TJUE – Tribunal Europeu de Justiça da União Europeia – art.º 9.º da diretiva 90/270/CEE – Dúvida colocada pela Exma. Senhora Vereadora ...
A Câmara Municipal de …, através de Ofício n.º 2585, datado de 13.03.2023, registado com a referência E01990-202303-ORD, de 16.03.2023, relativo ao assunto em epígrafe, veio solicitar esclarecimento quanto à seguinte questão: «O Tribunal Europeu de Justiça da UE (TJUE) determinou que os empregadores têm de pagar óculos graduados ou lentes de contacto a quem trabalhe em frente de monitores. (…) Num acórdão publicado a 22 de dezembro de 2022, o TJUE considerou que o artigo 9.º da Diretiva 90/270/CEE, “Proteção dos olhos e vista dos trabalhadores”, prevê o pagamento, por parte do empregador, de despesas associadas à compra de auxiliares de visão.».
Vejamos
I
A Diretiva n.º 90/270/CEE, do Conselho, de 29 de maio, relativa às prescrições mínimas de segurança e de saúde respeitantes ao trabalho com equipamentos dotados de visor, que constitui a quinta diretiva especial na aceção do n.º 1 do artigo 16.º da Diretiva n.º 89/391/CEE, do Conselho, de 12 de junho, foi transposta para a ordem jurídica portuguesa pelo Decreto-Lei n.º 349/93, de 1 de outubro.
Com efeito, e para o que interessa, ao artigo 9.º da Diretiva corresponde “grosso modo” o artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 349/93, de 1 de outubro, ao disporem ambos respetivamente:
“Artigo 9.º
Proteção dos olhos e da vista dos trabalhadores
1. Os trabalhadores beneficiarão de um exame adequado dos olhos e da vista, efetuado por uma pessoa que possua as necessárias qualificações:
— antes de iniciarem o trabalho com visor,
— Depois disso, periodicamente, e
— Quando surgirem perturbações visuais que tenham podido resultar do trabalho com visor.
2. Os trabalhadores beneficiarão de um exame médico oftalmológico se os resultados do exame referido no n.º 1 demonstrarem a sua necessidade.
3. Os trabalhadores devem receber dispositivos de correção especiais, concebidos para o seu tipo de trabalho, se os resultados do exame referido no n.º 1 ou do exame referido no n.º 2 demonstrarem a sua necessidade e os dispositivos de correção normais não puderem ser utilizados.
4. As medidas tomadas em aplicação do presente artigo não devem em caso algum ocasionar encargos financeiros adicionais para os trabalhadores.
Artigo 7.º
Vigilância médica
1 - Antes de ocuparem pela primeira vez um posto de trabalho dotado de visor, periodicamente e sempre que apresentem perturbações visuais, os trabalhadores devem ser sujeitos a um exame médico adequado dos olhos e da visão.
2 - Se os resultados do exame referido no número anterior demonstrarem a sua necessidade, os trabalhadores beneficiam de um exame oftalmológico.
3 - Sempre que os resultados dos exames médicos o exigirem e os dispositivos normais de correção não puderem ser utilizados, devem ser facultados aos trabalhadores dispositivos especiais de correção concebidos para o tipo de trabalho desenvolvido.”.
Da leitura destes dois artigos, ressalta o facto, de em ambos, a entidade empregadora dever assegurar ao trabalhador, antes deste ocupar o posto de trabalho dotado de visor, um exame médico adequado dos olhos e visão.
Se deste exame ou dos que se lhes seguirem forem detetadas perturbações visuais, o trabalhador deve ser sujeito a um exame oftalmológico, o qual de acordo com o tipo de trabalho, poderá demonstrar a necessidade de utilizar dispositivos de correção normais ou especiais se os primeiros não puderem ser utilizados.
Ora, desde logo é evidenciado o carácter supletivo ou residual dos dispositivos de correção especiais na linguagem do legislador, fazendo-se notar também, que o artigo 7.º não transpôs a disposição do n.º 4 do artigo 9.º da Diretiva.
Por outro lado, do confronto da letra do n.º 3 do artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 349/93 de 1 de outubro, com o n.º 3 do artigo 9.º da Diretiva, a dúvida que desde logo se nos depara é qual ou quais os elementos que permite diferenciar os dispositivos de correção normais dos especiais.
Relativamente à diferença entre dispositivos de correção normais e especiais, o próprio acórdão do Tribunal Europeu de Justiça da EU (TJUE)[1] aborda a mesma no seu articulado 37 a 39, o qual acompanhamos, quando afirma:
“37 No que respeita, em segundo lugar, ao conceito de «dispositivos de correção normais», na aceção do artigo 9.°, n.º 3, da referida diretiva, que remetem para dispositivos que não permitem corrigir as perturbações visuais estabelecidas pelos exames referidos nos n.os 1 e 2 desse artigo 9.°, há que considerar que, como salienta, em substância, a advogada-geral no n.º 30 das suas conclusões, dizem respeito a dispositivos que são usados fora do posto de trabalho e que, por conseguinte, não estão necessariamente relacionados com as condições de trabalho. Assim, tais dispositivos não servem para corrigir perturbações visuais relacionadas com o trabalho e podem não ter uma relação específica com o trabalho em equipamentos dotados de visor.
38 No que respeita, em terceiro lugar, ao conceito de «dispositivos de correção especiais, concebidos para [o] tipo de trabalho», na aceção do artigo 9. °, n.º 3, da Diretiva 90/270, cumpre recordar, por um lado, que os trabalhadores devem receber tais dispositivos de correção especiais se não puderem ser utilizados dispositivos de correção normais para corrigir as perturbações visuais verificadas na sequência dos exames previstos nos n.os 1 e 2 desse artigo. Por conseguinte, um dispositivo de correção especial deve necessariamente visar a correção ou a prevenção de perturbações visuais que um dispositivo de correção normal não pode corrigir ou prevenir.
39 Por outro lado, o caráter especial do dispositivo de correção pressupõe que este tenha uma relação com o trabalho com equipamentos dotados de visor, uma vez que serve para corrigir ou prevenir perturbações visuais especificamente relacionadas com tal trabalho e verificadas na sequência dos exames previstos no artigo 9.°, n.os 1 e 2, dessa diretiva.”
Em bom rigor, este mesmo acórdão, nas suas conclusões declara que:
- O artigo 9.°, n.º 3, da Diretiva 90/270/CEE do Conselho, de 29 de maio de 1990, relativa às prescrições mínimas de segurança e de saúde respeitantes ao trabalho com equipamentos dotados de visor (quinta diretiva especial na aceção do n.º 1 do artigo 16.° da Diretiva 89/391/CEE), deve ser interpretado no sentido de que: os «dispositivos de correção especiais», previstos nesta disposição, incluem os óculos graduados especificamente destinados a corrigir e a prevenir perturbações visuais relacionadas com um trabalho que envolve equipamento dotado de visor. Por outro lado, estes «dispositivos de correção especiais» não se limitam a dispositivos utilizados exclusivamente no âmbito profissional.
- O artigo 9.°, n.os 3 e 4, da Diretiva 90/270 deve ser interpretado no sentido de que: a obrigação de fornecer aos trabalhadores em causa um dispositivo de correção especial, prevista nesta disposição, que impende sobre a entidade patronal, pode ser cumprida quer pelo fornecimento direto do referido dispositivo por esta última, quer pelo reembolso das despesas necessárias efetuadas pelo trabalhador, mas não pelo pagamento de um prémio salarial geral ao trabalhador.” – sublinhado nosso.
Note-se que, para garantir uma aplicação efetiva e homogénea da legislação da União e evitar qualquer interpretação divergente, os juízes nacionais podem, e por vezes devem, dirigir-se ao Tribunal de Justiça a fim de lhe pedir que esclareça um ponto de interpretação do direito da União, para poderem, por exemplo, verificar a conformidade da respetiva legislação nacional com este direito. O pedido de decisão prejudicial pode igualmente ter como finalidade a fiscalização da legalidade de um ato de direito da União.
No caso que vimos a tratar, o Tribunal de Justiça responde não através de um simples parecer, mas mediante acórdão. O tribunal nacional destinatário fica vinculado pela interpretação dada e vincula também os outros órgãos jurisdicionais nacionais a que seja submetido um problema idêntico.
É também no âmbito do processo de reenvio prejudicial que qualquer cidadão europeu pode solicitar que sejam esclarecidas as regras da União que lhe dizem respeito. De facto, embora o processo de reenvio prejudicial só possa ser desencadeado por um órgão jurisdicional nacional, as partes já presentes nos órgãos jurisdicionais nacionais, os Estados-Membros e as instituições da União podem participar no processo perante o Tribunal de Justiça.
II
A Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, abreviadamente designada por LTFP, aprovada em anexo à Lei n.º 35/2014, de 20 de junho, na sua atual redação, determina no seu artigo 16.º-A que: “Para efeitos do disposto na alínea j) do n.º 1 do artigo 4.º da presente lei, o regime jurídico da promoção da segurança e saúde no trabalho, constante da Lei n.º 102/2009, de 10 de setembro, é aplicável aos empregadores públicos com as especificidades previstas no presente título.”.
E sob a epígrafe “Informação ao serviço de segurança e saúde no trabalho” o artigo 16.º-C dispõe: “O empregador público deve comunicar ao serviço de segurança e de saúde no trabalho e aos trabalhadores com funções específicas no domínio da segurança e da saúde no trabalho o início de exercício de funções de todos os trabalhadores com vínculo de emprego público, incluindo os trabalhadores em situação de mobilidade ou de cedência de interesse público, e das pessoas que não sejam titulares de uma relação jurídica de emprego público, nomeadamente estagiários, bolseiros e prestadores de serviços.”
Esta norma está em linha com a exigência que já constatámos no n.º 1 do artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 349/93, de 1 de outubro, acima transcrito, isto é, a obrigatoriedade do serviço de segurança e saúde no trabalho da entidade empregadora, sujeitar o trabalhador no início do exercício de funções a um exame médico dos olhos e da visão.
Na sequência deste exame pode haver necessidade de uma observação mais especializada por oftalmologista, a qual determinará, consoante os casos, dispositivos de correção normais ou especiais, em que só estes últimos deverão ser facultados ao trabalhador para o tipo de trabalho a desenvolver, na terminologia do n.º 3, in fine, do artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 349/93, de 1 de outubro.
III
Em conclusão:
1 – É no âmbito do serviço de segurança e da saúde no trabalho que é aferida a necessidade de dispositivos normais ou especiais de correção visual.
2 – A entidade empregadora somente está investida no dever de facultar aos trabalhadores dispositivos especiais de correção, quando os normais não puderem ser utilizados na sequência de exame oftalmológico.
À consideração superior,
[1] Consultável em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/HTML/?uri=CELEX:62021CJ0…