Pedido de parecer - Conflito interesses - Junta de Freguesia de…
A Senhora Presidente da Junta de Freguesia de …, através de email de 01 de agosto de 2022, vem solicitar parecer sobre a existência ou não de “conflito de interesses” na votação dos pontos a aprovar na ordem de trabalhos da Assembleia Municipal, que tenham a ver com os pelouros do Vice-Presidente da Câmara, que é seu filho, cuja companheira, por sua vez, integra a Assembleia Municipal.
II - Análise:
- Quanto ao exercício das funções em causa:
Conforme previsto na alínea c) do n.º 1 do artigo 18.º do Regime Jurídico das Autarquias Locais (RJAL), aprovado pela Lei n.º 75/2013, de 12 de setembro (versão atualizada), compete ao presidente da junta de freguesia:” c) Representar a junta de freguesia na assembleia de freguesia e integrar a assembleia municipal do município em cuja circunscrição territorial se compreende a circunscrição territorial da respetiva freguesia, comparecendo às sessões, salvo caso de justo impedimento, sendo representado, neste caso, pelo substituto legal por si designado”.
Deste modo, o presidente da junta de freguesia é, por inerência legal, membro da assembleia municipal do município em cuja circunscrição territorial a freguesia se encontra inserida.
Estando expressamente previsto por lei, não existe qualquer incompatibilidade no exercício simultâneo destas funções[1].
Por outro lado, a câmara municipal é constituída por um presidente e por vereadores, um dos quais designado vice-presidente, ao qual, para além de outras funções que lhe sejam distribuídas, cabe substituir o primeiro nas suas faltas e impedimentos, nos termos do n.º 1 do artigo 56.º e do n.º 3 do artigo 57.º, ambos do RJAL.
Por sua vez, a assembleia municipal é o órgão deliberativo do município[2], constituído por membros eleitos diretamente pelos munícipes, sendo neste caso, um dos membros, a companheira do vice-presidente.
Nestes termos, a legitimidade das decisões decorre da eleição dos titulares dos respetivos órgãos, que estão constitucionalmente consagrados[3], concluindo-se com base no respetivo quadro legal que estamos perante eleitos locais com legitimidade para o desenvolvimento das funções respetivas, nos termos do n.º 2 do artigo 1.º do Estatuto dos Eleitos Locais, aprovado pela Lei n.º 29/87, de 30 de junho (versão atualizada).
- Quanto à questão colocada:
A questão colocada, relativa à participação da presidente da junta de freguesia na votação dos pontos da ordem de trabalhos da assembleia de câmara, que digam respeito às funções que foram distribuídas ao vice-presidente, tal como vem colocada, sem a identificação da situação (concreta) a decidir, não permite concluir pela existência de uma situação em que se possa, com razoabilidade, duvidar seriamente da imparcialidade da conduta ou decisão do membro do órgão em causa.
Só à luz das circunstâncias de cada caso concreto cabe assegurar a credibilidade da decisão administrativa, identificando-se quem tenha, direta ou indiretamente, um interesse financeiro, económico ou outro interesse pessoal, suscetível de comprometer a sua imparcialidade no contexto da sua atividade, função.
Vejamos o quadro legal:
A matéria questionada prende-se com as garantias da imparcialidade da administração, cujos princípios enformadores, em primeira linha, estão consagrados no n.º 2 do artigo 266.º da Constituição:
“Os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei e devem atuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé”.
As garantias da imparcialidade, segundo estes princípios, surgem integradas no Código de Procedimento Administrativo, estabelecendo-se casos de presunção inilidível de parcialidade, conforme o disposto no n.º 1 do artigo 69.º do CPA: “ os titulares de órgãos da Administração Pública e os respetivos agentes, bem como quaisquer outras entidades que, independentemente da sua natureza, se encontrem no exercício de poderes públicos, não podem intervir em procedimento administrativo ou em ato ou contrato de direito público ou privado da Administração Pública “ nos casos previstos nas alíneas a) a f) do n.º 1 do mesmo artigo.
Quando se verifique causa de impedimento prevista nestes casos, em relação a qualquer titular de órgão (ou agente da Administração Pública), o mesmo deverá comunicar desde logo o facto ao presidente do órgão colegial (ou superior hierárquico), conforme se determina no n.º 1 do artigo 70.º do CPA.
Além da figura de impedimento, o CPA estabelece ainda, no seu artigo 73.º, um regime de dispensa de intervenção no procedimento “quando ocorra circunstância pela qual se possa com razoabilidade duvidar seriamente da imparcialidade da sua conduta ou decisão” (exemplifica alguns casos nas alíneas a) a e) do n.º 1 deste artigo).
Por outro lado, no exercício das suas funções, os eleitos locais estão especialmente vinculados ao cumprimento de princípios de prossecução do interesse público, de acordo com o artigo 4.º do Estatuto dos Eleitos Locais, aprovado pela Lei n.º 29/87, de 30 de junho (redação atual):
“i) Salvaguardar e defender os interesses públicos do Estado e da respetiva autarquia;
ii) Respeitar o fim público dos poderes em que se encontram investidos;
iii) Não patrocinar interesses particulares, próprios ou de terceiros, de qualquer natureza, quer no exercício das suas funções, quer invocando a qualidade de membro de órgão autárquico;
iv) Não intervir em processo administrativo, ato ou contrato de direito público ou privado nem participar na apresentação, discussão ou votação de assuntos em que tenha interesse ou intervenção, por si ou como representante ou gestor de negócios de outra pessoa, ou em que tenha interesse ou intervenção em idênticas qualidades o seu cônjuge, parente ou afim em linha reta ou até ao 2.º grau da linha colateral, bem como qualquer pessoa com quem viva em economia comum;
v) Não celebrar com a autarquia qualquer contrato, salvo de adesão;
vi) Não usar, para fins de interesse próprio ou de terceiros, informações a que tenha acesso no exercício das suas funções;”
Por último, quanto a conflitos de interesses, o regime geral da prevenção da corrupção (RGPC), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 109-E/2021, de 09 de dezembro, impõe às entidades públicas que adotem medidas destinadas a assegurar a isenção e a imparcialidade dos membros dos respetivos órgãos de administração, seus dirigentes e trabalhadores e a prevenir situações de favorecimento, designadamente no âmbito do sistema de controlo interno (cf. os artigos 13.º e 15.º deste regime).
Nesse sentido, os membros dos órgãos de administração, dirigentes e trabalhadores das entidades públicas assinam uma declaração de inexistência de conflitos de interesses nos procedimentos em que intervenham, respeitantes às matérias ou áreas de intervenção definidas nas alíneas a) a d) do n.º 2 do seu artigo 13.º (como seja o caso da contratação pública[4], concessão de subsídios e outras).
Para efeitos da aplicação deste regime, considera-se conflito de interesses qualquer situação em que se possa, com razoabilidade, duvidar seriamente da imparcialidade da conduta ou decisão do membro do órgão de administração, dirigente ou trabalhador, nos termos dos artigos 69.º e 73.º do CPA (cf. o n.º 4 do seu artigo 13.º).
Em face do exposto, é à luz das circunstâncias de cada caso que importa verificar, em relação a qualquer um dos titulares de órgão identificados, se integra qualquer uma das previsões assinaladas, por ação ou omissão, suscetível de comprometer a sua imparcialidade no contexto de determinado procedimento, e por essa circunstância não lhe possa ser reconhecido o “estatuto de desinteressado“ [5].
IV - Conclusão - Proposta:
Estamos perante eleitos locais com legitimidade para o desenvolvimento das funções respetivas, nos termos do Estatuto dos Eleitos Locais, pelo que a participação na assembleia municipal, por parte da presidente da junta de freguesia, incluindo na votação dos assuntos distribuídos ao vice-presidente, decorre das atividades inerentes ao órgão.
A intervenção em procedimento que integre a previsão das alíneas a) a f) do n.º 1 do artigo 69.º do CPA, por parte de qualquer um dos titulares e membros dos órgãos identificados, em violação do dever de comunicar a causa de impedimento, incorre em violação do dever específico de função, de acordo com o artigo 4.º, alínea iv), do Estatuto dos Eleitos Locais.
Perante qualquer outra situação em que se possa, com razoabilidade, duvidar seriamente da imparcialidade da sua conduta ou decisão, deverão os mesmos apresentar pedido de dispensa de intervenção no procedimento, de acordo com o 73.º do CPA, independentemente de quem seja o titular do cargo do serviço/departamento de que seja oriunda a matéria posta a votação.
[1]As funções ou atividades derivadas do cargo e as que são exercidas por inerência constituem exceção ao exercício de funções em regime de exclusividade, tal como previsto na al. a) do n.º 2 do artigo 6.º do Regime do Exercício e Funções por Titulares de Cargos Políticos e Altos Cargos Públicos, aprovado pela Lei n.º 52/2019, de 31 de março (versão atualizada).
[2] Cf. o n.º 1 do artigo 6.º do RJAL. As competências e o modo de funcionamento da assembleia municipal estão regulados nos artigos 24.º a 31.º do RJAL
[3] Cf. artigo 239.º da Constituição da República Portuguesa.
[4]Cf. o n.º 4 do artigo 1.º A do Códigos dos Contratos Públicos, “considera-se conflito de interesses qualquer situação em que o dirigente ou o trabalhador de uma entidade adjudicante ou de um prestador de serviços que age em nome da entidade adjudicante, que participe na preparação e na condução do procedimento de formação de contrato público ou que possa influenciar os resultados do mesmo, tem direta ou indiretamente um interesse financeiro, económico ou outro interesse pessoal suscetível de comprometer a sua imparcialidade e independência no contexto do referido procedimento”.
[5]Cf. o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 10 de outubro de 2010, processo: 396/18.8BECTB.