Pedido de informação – Junta de freguesia … …
Deu entrada nesta CCDR Algarve, email datado de 10.04.2023, da Junta de Freguesia de ..., que mereceu o registo n.º E02598-202304-AUT, sobre o assunto em epígrafe em que são colocadas as seguintes questões:
“Um membro do Executivo da Junta de Freguesia, que só recebe a compensação mensal para encargos de 252,08€ e que tem como atividade a venda de equipamentos e material consumível para máquinas e oficinas, pode concorrer para vender os seus produtos ou prestar os seus serviços à Câmara Municipal, outra Junta de Freguesia (Não àquela que faz parte do Executivo) ou empresa com capital municipal do mesmo concelho, mesmo concurso público?
- Se for um Membro da Assembleia de Freguesia efetivo, mesmo do partido da Oposição, pode concorrer como prestador de serviços ou empreitadas à Junta de freguesia onde foi eleito? E para a Câmara Municipal ou qualquer outra Junta de Freguesia do mesmo concelho? E se for uma empresa com capital Municipal?”.
Vejamos:
I
A fim de melhor enquadrar as questões colocadas, e por se considerar o trabalho sobre impedimentos e incompatibilidades constante da edição de fevereiro de 2021, elaborado pela Direção de Serviços de Apoio Jurídico e à Administração da CCDR do Norte[1], um excelente contributo para as mesmas, passamos a transcrevê-lo em parte:
“O princípio da imparcialidade vem consagrado no n.º 2 do artigo 266.º da Constituição, que estabelece que “[o]s órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei e devem atuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa fé”, bem como no artigo 9.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA), que autonomiza: “[a] Administração Pública deve tratar de forma imparcial aqueles que com ela entrem em relação, designadamente, considerando com objetividade todos e apenas os interesses relevantes no contexto decisório e adotando as soluções organizatórias e procedimentais indispensáveis à preservação da isenção administrativa e à confiança nessa isenção”.
Os “impedimentos”, corolário do princípio da imparcialidade, verificam-se quando determinadas causas objetivas, expressamente previstas na lei se interpõem entre o titular de órgão da Administração Pública e a matéria objeto ou a pessoa destinatária da sua intervenção num concreto procedimento, assim se patenteando/pressupondo, “ex lege” (daí que o impedimento opere automaticamente), a existência de um real ou potencial conflito de interesses e inibindo, por isso, a atuação do titular do órgão, por essa via se protegendo/garantindo a imparcialidade, do mesmo passo que outros princípios fundamentais. Acompanhando o Acórdão do Tribunal constitucional n.º 468/96 (Proc.º n.º 87/95), de 14 de março de 1996:
“Tendo em vista a prossecução do interesse público e o respeito pelos direitos e interesses dos cidadãos e visando assegurar a observância dos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça e da imparcialidade no exercício das funções dos órgãos e agentes administrativos, o legislador ordinário pode definir um regime de (…) impedimentos mais ou menos rigoroso e aplicável a um universo pessoal mais ou menos vasto”.
(…)
Em relação ao regime do impedimento, através de cuja aplicação se veda (impede) aos titulares de órgãos da Administração Pública a sua intervenção – quer pela participação procedimental na respetiva preparação e execução, quer pela formulação/prolação da decisão administrativa, participação e decisão que lhes competiria funcionalmente assegurar caso não se verificasse tal impedimento – estabelece-se, no n.º 1 do artigo 69.º do CPA, que aqueles não podem intervir em procedimento administrativo ou em ato ou contrato de direito público ou privado da Administração Pública:
“a) Quando nele tenham interesse, por si, como representantes ou como gestores de negócios de outra pessoa;
b) Quando, por si ou como representantes ou gestores de negócios de outra pessoa, nele tenham interesse o seu cônjuge ou pessoa com quem viva em condições análogas às dos cônjuges, algum parente ou afim em linha reta ou até ao segundo grau da linha colateral, bem como qualquer pessoa com quem vivam em economia comum ou com a qual tenham uma relação de adoção, tutela ou apadrinhamento civil;
c) Quando, por si ou como representantes ou gestores de negócios de outra pessoa, tenham interesse em questão semelhante à que deva ser decidida, ou quando tal situação se verifique em relação a pessoa abrangida pela alínea anterior;
d) Quanto tenham intervindo no procedimento como perito ou mandatário ou hajam dado parecer sobre questão a resolver;
e) Quando tenha intervindo no procedimento como perito ou mandatário o seu cônjuge ou pessoa com quem viva em condições análogas às dos cônjuges, parente ou afim em linha reta ou até ao segundo grau da linha colateral, bem como qualquer pessoa com quem vivam em economia comum ou com a qual tenham uma relação de adoção, tutela ou apadrinhamento civil; f) Quando se trate de recurso de decisão proferida por si, ou com a sua intervenção, ou proferida por qualquer das pessoas referidas na alínea b) ou com intervenção destas.”
As garantias de imparcialidade refletem-se em vários institutos que não se podem confundir entre si, nomeadamente os regimes sobre incompatibilidades e impedimentos. Enquanto as primeiras, em princípio, são permanentes, os impedimentos são incidentais e reportam-se, nomeadamente, à existência de interesses pessoais, diretos ou indiretos do agente que determinam que a lei estabeleça de forma taxativa que, por não se encontrar assegurada a sua isenção, fica proibido de participar nos processos em que se verificam as causas de impedimento, como se pode melhor comprovar pela redação do artigo do CPA atrás transcrito.
II
Versando o presente pedido de informação sobre a relação entre o exercício de funções de membro de órgão autárquico como eleito local e o exercício de atividade profissional privada pelo mesmo, somos convocados a atender ao que sobre a matéria dispõe o respetivo Estatuto dos Eleitos Locais[2].
De acordo com o artigo 4.º, os eleitos locais estão no exercício das suas funções, vinculados ao cumprimento dos seguintes princípios/deveres quais sejam em matéria de legalidade e direitos dos cidadãos:
– Observar escrupulosamente as normas legais e regulamentares aplicáveis aos atos por si praticados ou pelos órgãos a que pertençam;
- Cumprir e fazer cumprir as normas constitucionais e legais relativas à defesa dos interesses e direitos dos cidadãos no âmbito das suas competências;
- Atuar com justiça e imparcialidade.
E em matéria de prossecução do interesse público:
- Salvaguardar e defender os interesses públicos do Estado e da respetiva autarquia;
- Respeitar o fim público dos poderes em que se encontram investidos;
- Não patrocinar interesses particulares, próprios ou de terceiros, de qualquer natureza, quer no exercício das suas funções, quer invocando a qualidade de membro de órgão autárquico;
- Não intervir em processo administrativo, ato ou contrato de direito público ou privado nem participar na apresentação, discussão ou votação de assuntos em que tenha interesse ou intervenção, por si ou como representante ou gestor de negócios de outra pessoa, ou em que tenha interesse ou intervenção em idênticas qualidades o seu cônjuge, parente ou afim em linha reta ou até ao 2.º grau da linha colateral, bem como qualquer pessoa com quem viva em economia comum;
- Não celebrar com a autarquia qualquer contrato, salvo de adesão.[3]
Ora no que se refere à aplicação do artigo 4.º, alínea b), subalínea v), isto é à não celebração com a autarquia qualquer contrato, salvo de adesão, o Acórdão do STA n.º 2/2020 (Proc.º n.º 88/18.8BEPNF de 12.12.2019), uniformizador de jurisprudência, vem no seu ponto 9 referir que: “[…a um plano mais empírico, ou seja, ao do « conflito de interesses» que, no fundo, configura o caso típico de vida presente na mente do legislador como justificador do impedimento em análise. O conflito de interesses pressupõe, no mínimo dois interesses; e haverá conflito quando - em termos efectivos ou meramente potenciais - a possibilidade de «satisfação plena de um» apenas se verificará à custa do sacrifício ou prejuízo – em maior ou menor medida – da satisfação do outro. A melhor forma de prevenir o conflito de interesses será empreender no sentido de evitar o surgimento do interesse cuja satisfação potencial ou efectiva prejudica ou sacrifica o interesse contraposto. A situação de potencial conflito de interesses surgirá sempre que um eleito local tenha, directa ou indirectamente, um interesse financeiro, económico, ou outro interesse pessoal, susceptível de comprometer a sua imparcialidade no contexto da celebração de um contrato com a respectiva autarquia, de tal forma que não lhe poderá ser atribuído o estatuto de «desinteressado». E na gestão de grande proximidade que acontece ao nível das autarquias locais, estas situações não só têm um considerável potencial multiplicativo como ainda atingem forte dimensão pessoal, minando o valor da confiança na imparcialidade, a que supra nos referimos]”.
Por outro lado, e no que ao regime dos impedimentos diz respeito, há que atender ao que dispõe a Lei n.º 52/2019, de 31 de julho, que aprovou o regime do exercício de funções por titulares de cargos políticos e altos cargos públicos.
Nos termos do seu artigo 2.º, n.º 1, alínea i), são considerados cargos políticos, os membros dos órgãos executivos do poder local, sendo que os vogais das juntas de freguesia com menos de 10.000 eleitores (vide n.º 2 do mesmo artigo 2.º) que se encontrem em regime de não permanência estão dispensados das obrigações declarativas a que alude a alínea b) do n.º 2 do artigo 7.º.
Decorre do n.º 1 do artigo 8.º que algumas inibições recaem sobre os titulares de cargos políticos do poder local ao dispor que: “1 - Os titulares de cargos políticos e de altos cargos públicos que, nos últimos três anos anteriores à data da investidura no cargo, tenham detido, nos termos do artigo 9.º, a percentagem de capital em empresas neles referida ou tenham integrado corpos sociais de quaisquer pessoas coletivas de fins lucrativos não podem intervir:
a) Em procedimentos de contratação pública de fornecimento de bens ou serviços ao Estado e a outras pessoas coletivas públicas aos quais aquelas empresas e pessoas coletivas por si detidas sejam opositoras;
b) Na execução de contratos do Estado e demais pessoas coletivas públicas com elas celebrados;
c) Em quaisquer outros procedimentos formalmente administrativos, bem como negócios jurídicos e seus atos preparatórios, em que aquelas empresas e pessoas coletivas sejam destinatárias da decisão, suscetíveis de gerar dúvidas sobre a isenção ou retidão da sua conduta, designadamente nos de concessão ou modificação de autorizações ou licenças, de atos de expropriação, de concessão de benefícios de conteúdo patrimonial e de doação de bens.”
Concretamente sobre os impedimentos a que estão sujeitos os titulares de cargos políticos (e também os titulares de altos cargos públicos), o artigo 9.º deste diploma consigna o seguinte:
“Artigo 9.º
Impedimentos
1 - Os titulares de cargos políticos e de altos cargos públicos estão impedidos de servir de árbitro ou de perito, a título gratuito ou remunerado, em qualquer processo em que seja parte o Estado e demais pessoas coletivas públicas.
2 - Os titulares de cargos políticos ou de altos cargos públicos de âmbito nacional, por si ou nas sociedades em que exerçam funções de gestão, e as sociedades por si detidas em percentagem superior a 10 % do respetivo capital social, ou cuja percentagem de capital detida seja superior a 50 000 (euro), não podem:
a) Participar em procedimentos de contratação pública;
b) Intervir como consultor, especialista, técnico ou mediador, por qualquer forma, em atos relacionados com os procedimentos de contratação referidos na alínea anterior.
3 - O regime referido no número anterior aplica-se às empresas em cujo capital o titular do órgão ou cargo, detenha, por si ou conjuntamente com o seu cônjuge, unido de facto, ascendente e descendente em qualquer grau e colaterais até ao 2.º grau, uma participação superior a 10 % ou cujo valor seja superior a 50 000 (euro).
4 - O regime referido no n.º 2 aplica-se ainda aos seus cônjuges que não se encontrem separados de pessoas e bens, ou a pessoa com quem vivam em união de facto, em relação aos procedimentos de contratação pública desencadeados pela pessoa coletiva de cujos órgãos o cônjuge ou unido de facto seja titular.
5 - O regime dos n.os 2 a 4 aplica-se aos demais titulares de cargos políticos e altos cargos públicos de âmbito regional ou local não referidos no n.º 2, aos seus cônjuges e unidos de facto e respetivas sociedades, em relação a procedimentos de contratação pública desenvolvidos pela pessoa coletiva regional ou local de cujos órgãos façam parte.
6 - No caso dos titulares dos órgãos executivos das autarquias locais, seus cônjuges e unidos de facto e respetivas sociedades, o regime dos n.os 2 a 4 é aplicável ainda relativamente aos procedimentos de contratação:
a) Das freguesias que integrem o âmbito territorial do respetivo município;
b) Do município no qual se integre territorialmente a respetiva freguesia;
c) Das entidades supramunicipais de que o município faça parte;
d) Das entidades do setor empresarial local respetivo.
7 - De forma a assegurar o cumprimento do disposto nos números anteriores, os titulares de cargos políticos ou de altos cargos públicos e os seus cônjuges não separados de pessoas e bens têm direito, sem dependência de quaisquer outras formalidades, à liquidação da quota por si detida, nos termos previstos no Código Civil, à exoneração de sócio, nos termos previstos no Código das Sociedades Comerciais ou à suspensão da sua participação social durante o exercício do cargo.
8 - O direito previsto no número anterior pode ser exercido em relação à liquidação e exoneração da totalidade do valor da quota ou apenas à parcela que exceda o montante de 10 % ou de 50 000 (euro), e, caso o titular do cargo não exerça qualquer uma das faculdades previstas no n.º 7, pode a sociedade deliberar a suspensão da sua participação social.
9 - Devem ser objeto de averbamento no contrato e de publicidade no portal da Internet dos contratos públicos, com indicação da relação em causa, os contratos celebrados pelas pessoas coletivas públicas de cujos órgãos os titulares de cargos políticos e altos cargos públicos são titulares com as seguintes pessoas com as quais mantêm relações familiares: a) Ascendentes e descendentes em qualquer grau do titular do cargo;
b) Cônjuges que se encontrem separados de pessoas e bens do titular do cargo;
c) Pessoas que se encontrem numa relação de união de facto com o titular do cargo.
10 - O disposto no número anterior aplica-se ainda a contratos celebrados com empresas em que as pessoas referidas no número anterior exercem controlo maioritário e a contratos celebrados com sociedades em cujo capital o titular do cargo político ou de alto cargo público, detenha, por si ou conjuntamente com o cônjuge ou unido de facto, uma participação inferior a 10 % ou de valor inferior a 50 000 (euro).
11 - O disposto no presente artigo é aplicável às sociedades de profissionais que estejam sujeitas a associações públicas profissionais.”
III
Conclusões
Em síntese e tendo em atenção o regime das incompatibilidades decorrentes do quadro normativo a que nos vimos a referir, nomeadamente as decorrentes do artigo 4.º da Lei n.º 29/87, de 30 de junho, o artigo 9.º da Lei n.º 52/2019, de 31 de julho, do artigo 69.º do CPA e n.º 2 do artigo 8.º da Lei n.º 27/96, de 1 de agosto, a intervenção em procedimento administrativo ou em ato ou contrato de direito público ou privado com a administração pública de titular de órgão da administração pública/ou titular de cargo político está interdita, pelo que ficam prejudicadas as questões alvo do pedido de parecer.
Não obstante, tendo presente:
a) Que a freguesia é uma das categorias de autarquia estabelecidas na Constituição da República Portuguesa (art.º 236.º da CRP);
b) Que, no poder local, só são considerados cargos políticos os membros dos órgãos executivos [alínea i) do n.º 1 do art.º 2.º da Lei n.º 52/2019, de 31 de julho];
c) O regime dos impedimentos dos titulares de cargos políticos autárquicos (n.º 6 do art.º 9.º da Lei n.º 52/2019, de 31 de julho) e
d) Os deveres a que estão vinculados todos os eleitos locais [alínea v) do art.º 4.º do Estatuto dos Eleitos Locais];
Há que concluir que os eleitos locais para as freguesias:
1) Que são membros dos órgãos executivos estão impedidos de contratualizar com a respetiva freguesia e com todas as freguesias que integram o âmbito territorial do respetivo município e com Município a que pertence a freguesia onde é titular, bem como com as respetivas empresas municipais;
2) Que não são membros dos órgãos executivos estão impedidos de contratualizar com a respetiva freguesia e respetivo Município.
É o que salvo melhor opinião se nos oferece sobre o assunto.
[1] Consultável em: https://www.ccdr-n.pt/storage/app/media/Inelegibilidades%20Impedimentos…
[2] Aprovado pela Lei n.º 29/87, de 30 de junho, na redação atual.
[3] Contrato de adesão, na sua forma pura, poderá definir-se como sendo aquele em que uma das partes, normalmente uma empresa de apreciável dimensão, formula unilateralmente cláusulas e a outra parte as aceita mediante a adesão ao modelo ou impresso que lhe é apresentado, não sendo possível modificar esse ordenamento negocial.